Carta aberta para Bruna

Acredito, sim, que perdemos todos. Espero que os próximos meses me provem errada. Enquanto isso, que se mantenha a tolerância, a empatia. O olhar o outro sem ódio, sem oposições raivosas.

O outro não é apenas um voto. Apesar das diferenças há muito mais e por vezes esse mais nos aproxima. Quiçá tenhamos até mais semelhanças do que diferenças. Você é mais do que eu vejo quando olho um eleitor que esteve do lado do vencedor, mesmo que esse vencedor traga um discurso que fere tantas vidas. Ainda assim, defendo sua liberdade de escolha. É o que eu prego, mas falar é facil.

Hipócrita. Foi assim que me senti neste fim de noite de ressaca eleitoral. De um modo, adotei a postura daqueles que eu tanto critico, que carregam tochas incendiárias e as usam a esmo, deixando o fogo consumir suas pontes. Tomei essa lição pois alguém me estendeu a mão e me disse “olha, não estou disposta a deixar que nossas diferenças nos separem”.

Desarmar o diálogo. Baixar a guarda. Ser melhor do que fui, exercício diário. Entristeço mas não me julgo. Entristeço porque me decepcionei comigo, mas tenho paciência, porque hoje eu cresci.

Aprendemos com os erros cometidos e recomeçamos. E deve ser constante. Aprendamos com os erros cometidos e recomecemos. Errei, fui reativa e me deixei levar pelo automatismo do não-dialogar, do ignorar, do desvalidar a escolha do outro. Fiz o que tanto me fere, o que tanto critico. Errei e reconheço. Errei e recomeço. Gente é para acolher e ser acolhida. É nisso que acredito. Não é fácil fazê-lo.

Todos os lados são o lado de cá. Apesar das discordâncias, apesar da autofagia, apesar do matar-se, ou querer matar-se, não há ‘eles’, existe apenas ‘nós’. Existimos. Grata pela lição. Por causa dela me enxergo por outro ângulo, por causa dela serei melhor. E serei resistência.

Com amor, Cristina.
28/10/2018

Cova rasa

Diz que o São João é dia bom para podar as rosas. De um jeito, pensa, foi o que se deu. Fitando o céu limpo daquela tarde, arregaça as mangas da camisa velha, gira a maçaneta e pisa descalça a grama do jardim. Tesoura em mãos, guilhotinou primeiro as vermelhas, as mais numerosas naquele ano, e que foram caindo umas por sobre as outras, numa despetalada poça a seus pés. Delas passou às demais, cobrindo parte do chão verde.

Contornou o muro baixo derrubando os galhos que precisavam sair, dar lugar a brotos novos. Providências imediatas. Amolara as lâminas antes de deixar a penumbra da cozinha; passava a pedra pelo fio uma duas três vezes, outro lado uma duas três vezes. Ao completar o caminho das roseiras vistoriou os pés de camélias às vésperas de desabrochar, os arbustos de azaleias muito vivas e hortênsias descoradas; adiante notou a trilha que levava folhas cortadas em pequenas frações para debaixo da terra. Voltou-se então e olhou a casa; soube que lá dentro já existia muito menos do que pela manhã, como se as paredes diminuíssem ou se apagassem de algo.

Antes de o escuro terminar de descer, enquanto se tingiam as bordas da abóbada do céu, recolheu as hastes coalhadas de espinhos como criança que junta conchas na areia. Mãos cheias, sentou sobre os calcanhares, deixou espetar-se a pele dos dedos desprotegidos, dobrou o pescoço voltando os olhos para a noite sem nuvem. Gostava quando a lua fica fininha, como estava, um sorriso boiando no azul fundo quase breu e teve saudade. Uma falta que puxava perpendicularmente para o meio do mundo, colando pernas e costas e braços ao solo familiar e ali ficou, ali dormiu, sem notar que cerrava os olhos e abria o peito vazio.

Uma casa vazia. O calçamento partido onde a vegetação rasteira busca luz; as vidraças fechadas, invisível empecilho ao ingresso do frescor transparente da nova manhã, antes de o sol subir; a quaresmeira do jardim da frente a perecer, imóvel contra o ataque das formigas carregadeiras. O coração depois de se partir ele é uma casa vazia. Mas, ah, as dálias no fundo do quintal.

O primo mais velho de Sobral

O mundo me apresentou Bel, por vias tortas, lá na pré-adolescência. Foi por meio duns gaúchos: no Minuano, dos Engenheiros do Hawaii. Era 1997, eu tinha onze ou já doze anos. Afirmação honesta, não recordo como aquela fita k7 pirateada me parou nas mãos, mas ela me acompanhou, no amado walkman da Aiwa, numa viagem no Voyage verde da família até a Serra Gaúcha. Não restou também – confesso -, recordação alguma das conversas e interações com mãe, pai ou a irmã no trajeto entre cidades; lembro apenas de, com os fones nos ouvidos, escutar pela primeira vez alguém dizer que não estava interessado em nenhuma teoria, nenhuma fantasia, nem no algo mais. Enquanto assistia a paisagem pela janela do carro eu ouvia aquela letra e sentia um estranhamento, como se aquela música fosse uma peça grande demais para o quebra-cabeça que compunha. Não preciso dizer que é a única faixa que me restou na memória.

Deve ter sido a fase em que comecei a prestar atenção, de fato, ao que me chegava aos ouvidos acompanhado de melodia, pois pouco adiante, na mesma época, descobri as classiconas Como nossos pais e Velha roupa colorida na voz da Elis. Daquelas circunstâncias raras em que algo atinge você bem no centro, onde importa. Não poderia ser diferente, esse momento “educação para Belchior” logo acabou e fui beber na fonte, mesmo com as dificuldades da internet precária e levando algumas sortes trocando de rádios. De uma maneira meu mundo mudou. Aquele sobralense abriu caminho para muito do que já me havia sido apresentado, mas que ainda não tinha alcançado naquela menina curitibana: Caetano, Chico, a própria Elis, Bethânia…. Na esteira vieram Ney Matogrosso e seus Secos e Molhados, Milton, Novos Baianos, tanto mais daqueles que tem significado até hoje, que tem mais significado hoje, tipo aquele livro que cresce junto com você quando relido.

Bel é quase família na minha cabeça, por isso toda a intimidade no trato. Ele me fez crescer. Fiquei triste de verdade quando ele morreu, era uma manhã de domingo em 2017. Quando soube lembrei do verso que ecoa em mim tem vinte e um anos, aquele grito de resistência de quem diz que amar e mudar as coisas lhe interessa mais. Guardo a frase junto com outros conselhos do bigodudo, de que o passado é roupa que não serve mais e a sentir tudo na ferida viva do meu coração.